
Histórias e lutas femininas:
A ficção como realidade
Em 2018, a advogada Tatiane Spitzner é morta por seu marido, Luís Felipe Manvailer, que a joga do quarto andar do prédio onde moravam. No mesmo ano, Marielle Franco foi morta a tiros na região Central do Rio de Janeiro. Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro critica a exigência de curso contra assédio em edital de concurso. Até hoje, mulheres são minoria em cargos de liderança.
Casos de feminicídio, violência contra a mulher, assédio no trabalho, racismo e desigualdade entre gêneros também são vistos na série brasileira Coisa Mais Linda, em que quatro personagens principais, Malu, Adélia, Thereza e Lígia, vivem situações de preconceito e tentam se enxergar dentro da sociedade carioca dos anos 1960.
No entanto, qual o limite que separa a realidade da ficção quando frases reais como as que seguem, ainda são ditas no século XXI? “Mas também você mereceu, fica dando moral para homem bêbado”, “Ninguém vai te querer com duas filhas”, “Você tem namorado ou marido? Às vezes, trabalhamos até mais tarde e alguns maridos acham ruim. ”, “Mas você nem é tão negra assim”.

CAPÍTULO 1
Diferença entre gêneros
Na série, Thereza personagem de Mel Lisboa, é a primeira mulher enfrenta as críticas da sociedade de 1959 por optar por trabalhar fora de casa, em uma redação de jornal. Nos primeiros episódios, ela é a única colunista mulher que, ironicamente, escreve para outras mulheres em uma revista chamada Ângela. Por ter companheiros de trabalho somente do gênero masculino, a personagem é obrigada a não só conviver em um ambiente machista todos os dias, ao lado de piadas, preconceitos e discriminação, mas também com o fato de existir somente um banheiro de uso geral. Uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia) revela que o número de mulheres ocupadas, trabalhando fora de casa, cresceu bastante, nesses 50 anos, principalmente entre 1960 e 1990.
Depois de tanto tempo vivendo sozinha dentro desse espaço, Thereza convence o seu chefe de que é uma boa opção contratar uma nova funcionária. No início, o editor chefe da revista não aceita a ideia, julgando o homem como um ser mais fácil de lidar por questões biológicas, visto como prático, focado, inteligente e profissional. Adjetivos que não só colocam a mulher em uma ilusória posição de fraqueza, como também de desigualdade e preconceito ao associar a imagem feminina como o oposto disso. A professora Jorgetânia Ferreira comenta que a inserção das mulheres brancas no mercado de trabalho foi a busca pela independência e luta feminina, diferentemente da inserção das mulheres negras, visto que a entrada delas no mercado de trabalho ocorreu de forma obrigatória, em busca de sustento próprio e familiar.
Ainda dentro da série, fica perceptível a escolha do contratante em optar por alguém sem experiência e compreensão no assunto, pelo simples fato de ser homem, ao invés de dar oportunidade a uma mulher experiente no tema. Situação que se passa na década de 1960 e perdura no século XXI, afinal, assim como em Coisa mais linda, a personagem Thaila Ayla, Hêlo foi contratada por receber cinco vezes menos que o jornalista homem, várias mulheres no ano de 2019 também são empregadas por um salário mais baixo. Fato ilegal desde o ano em que a série é retratada, uma vez que a Legislação brasileira teoricamente garante salários iguais entre mulheres e homens desde o ano de 1943 de acordo com a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).
Pesquisas realizadas pelo IBGE mostram que no ano de 2018 as mulheres ganhavam, em média, 20,5% menos que os homens, diferença de um valor de 529,00 reais ao mês, comprovando que a desigualdade salarial entre os gêneros persiste. Paralelo a isso, os movimentos feministas lutam para alcançar uma sociedade mais justa ao defender a igualdade de gênero, já que estáticas mostram que são as mulheres que possuem a maior média de anos de escolaridade e o maior investimento em afazeres domésticos.
Além disso, em um país que ocupa o 132º lugar no ranking do Fórum Econômico Mundial, em uma lista de 149 nações sobre equidade salarial para o trabalho similar, possui muitos relatos de mulheres que sofrem diariamente a desigualdade de gênero em sua vida. Uma delas é a engenheira Ana Clara (nome fictício), 23, que tenta ingresso e a igualdade no mercado de trabalho, mas não obtém sucesso. “Tudo começou na faculdade. Fiz graduação em Engenharia Civil e Engenharia Agrícola e ambas as salas tinham 50 alunos e, dentro desse total, só 5 eram mulheres”, lembra.. De acordo com Ana Clara, nas aulas de várias disciplinas, no decorrer das duas graduações, os professores faziam piadas sobre Engenharia ser um curso de homem e que eles teriam mais aptidão e melhor raciocínio pra exatas.
Depois de formada, ela participou de processos seletivos em que era, na maioria, a única mulher, não sendo escolhida em vários deles. “Sentia que até no momento da entrevista, as pessoas que estavam conduzindo o processo e fazendo perguntas com tons machistas, me perguntando sempre coisas mais difíceis do que perguntavam para os homens que estavam sendo entrevistados comigo” garante. Para ela, era como se os empregadores a testassem para saber se ela realmente sabia sobre o assunto que perguntavam ou se ia se contradizer nas respostas.
A ativista Jorgetânia Ferreira explica que as mulheres são socializadas para pensarem que são fragéis, que não podem ou que devem agir de determinada forma para ser aceita dentro de um grupo. "Nós vivemos em uma sociedade que não gosta de mulheres, uma população que paga menos, maltrata, mata, mutila, sempre critica o nosso corpo e aparência. Só mostra que não suportam a mulher."
A engenheira ressalta que o dado de currículo mais questionado era a formação profissional. As perguntas mais comuns eram:: “Como uma mulher aos 23 anos conseguiu fazer duas graduações simultaneamente?” e “Existem realmente os diplomas que comprovam a formação?”. Por conta disso, a profissional não atua na área de formação e encontra-se revoltada com a sociedade machista em que se vive. “Pensando em sobrevivência, montei dois currículos. Um em que mostro toda minha carreira acadêmica e outro em que omito as graduações”
“Trabalhei por oito meses em um lugar como caixa, onde o proprietário era um homem extremamente machista. Vivia fazendo comentários desnecessários e fazia questão de mostrar que por ele ser dono do estabelecimento, ele podia tratar seus funcionários como ele quisesse”, recorda. Ana Clara conta que ele tratava os colaboradores muito mal, principalmente as mulheres, fazia comentários sobre aparência e era grosseiro com todas. "Houve situações de mulheres, assim como eu, trabalharem uma carga horária maior que a de homens e ganhar menos apenas por machismo".
A profissional lembra de situações de humilhação cometidas por clientes homens nesse período em que foi caixa. Um dos exemplos é de um rapaz que chega até ela para pagar sua conta e pede para efetuar os cálculos do que foi consumido, uma vez que, o mesmo dizer ser graduando em Engenharia e acredita ter mais capacidade, com números, do que ela que é apenas funcionária de caixa. Outro caso se deu quando um cliente joga uma garrafa de vidro em sua direção por estar bêbado. E em ambas as situações, o seu chefe insiste: “Mas, também, você mereceu, fica dando moral para homem bêbado”. Situações como essas mostram como que numa sociedade misógina, a mulher é sempre responsabilizada pela humilhação que sofre. "A mulher tem uma obrigação de educar todos em sua volta, desde os filhos até o marido, além de ser sempre culpabilizada por tudo. Se uma mulher é estuprada, é por conta da roupa, se é violentada, é porque escolheu estar ali, entre outros inúmeros comentários absurdos." finaliza professora e ativista Jorgetânia Ferreira.
N
Na série, Thereza e Helô são vítimas de assédios constantes na redação onde trabalham. A maioria de homens, no ambiente de trabalho, faz piadinhas machistas todos os dias, e elas fingem ser normal e tentam passar por cima daquilo. Em uma das cenas, Thereza vai até seu chefe para tentar convencê-lo a contratar Helô. Depois de muita conversa, ele se convence e fala: “É, acho que não vai fazer mal contratar mais um rabo de saia para decorar o ambiente. ”
E não para por aí. Essa não foi a primeira piadinha disparada em uma reunião com a equipe. Seus colegas de trabalho não levam a sério as propostas de reportagem de Thereza e um deles solta um comentário: “Mulher nenhuma se interessa por isso, Thereza. Só, sapatão vai ler sobre a mulher na política. Tem que ser alguma coisa de tecido, nova estação, tendências, não sei. Ou quem sabe, como ser generosa com seu decote”, se referindo a nova contratada, Helô. Todos os colegas do homem caem na risada, enquanto as duas mulheres ficam completamente constrangidas.
Dentro da redação, as duas sofrem diversas piadas vindas de seus colegas de trabalho, diariamente. Segundo o Ministério Público do Trabalho, foram 165 denúncias de assédio sexual em 2012. Em 2017, cresceu para 340, ou seja, mais que o dobro. Entre 2007 e 2017, foram 168.965 denúncias registradas em 229 empresas, de um total de 250, segundo a Consultoria Proviti. 43,1% foram na área de relacionamento interpessoal e 25,66% foram relativas às práticas abusivas: assédio moral, assédio sexual, agressão física, discriminação e preconceito.
Em 2016, Gabriela (nome fictício) entrou como estagiária em um escritório de advocacia. Ao mandar seu currículo, foi pedido a ela que o entregasse com foto. Ela já achou estranho, porém, mandou. Na entrevista, o advogado dono do escritório pergunta se ela tem namorado ou marido, justificando que às vezes eles poderiam trabalhar até mais tarde e alguns homens achavam isso ruim. Ela disse que não tinha e foi contratada. Mas pouco tempo depois, ela começou a namorar, mas sem dar satisfações a ninguém do trabalho. Ambiente esse que contava com um chefe muito rigoroso e metódico, em que todos ficavam muito cansados. O advogado chefe, de 72 anos, na época, sempre resolvia as coisas via WhatsApp, até que o primeiro sinal de assédio percebido por Gabriela começou.
O chefe a liberou no final de dezembro e ela foi viajar a São Paulo com seu namorado. Já na cidade, o Dr. João (nome fictício do chefe) enviou uma mensagem perguntando com quem ela estava, namorado, amigos e como ela foi. Gabriela só visualizou a mensagem e logo em seguida ele mandou outra dizendo: “Assim eu vou ficar com ciúmes”. A moça ficou sem entender e estranhou muito, porém, novamente não respondeu.
O Dr. João fez uma viagem para a praia no começo de 2017. Ao voltar, trouxe um presente para Gabriela, era um caderninho, todo dia uma pergunta para ser respondida, durante 5 anos, coisa que, segundo ela, nem mexe mais por trazer muitas lembranças ruins. Logo após, em uma conversa que ela não lembra como surgiu, seu chefe diz que queria viajar com ela. Ela pensou:
“Eu fiquei ‘ué’, a gente vai se iludindo né, fingindo que não está entendendo o que aconteceu, assim, para a gente: (imaginando) ‘às vezes ele não quis dizer isso no mal sentido, né’, ‘talvez ele está querendo dizer que é algum processo que a gente veria agora né’. Aquelas mentiras que a gente vai contando para nós mesmas, mas enfim, esse foi mais um sinal que ele me deu. ”
Gabriela começou a estudar para outro vestibular que ela queria prestar e, em horários livres que ela tinha no trabalho, aproveitava para estudar. Foi então que o último caso aconteceu. “Certo dia, ele chegou bem atrás da minha cadeira e colocou as duas mãos entre o meu corpo. Perguntou se eu estava estudando e nisso ele deu uma ‘encoxada’ na minha cadeira ”.
Após esse ocorrido, ela foi até a sala do Dr. João reclamar, disse que não estava gostando nem um pouco dessas brincadeiras dele, e ele respondeu dizendo que só fazia esse tipo de brincadeira por que ela dava brecha para isso. O que foi uma grande surpresa, pois Gabriela nunca deu brecha e liberdade nenhuma. Ela pediu para sair, mas não foi tão fácil assim. Ele quis aumentar o salário dela primeiro, mas por fim acabou aceitando.
“Nenhuma pessoa que trabalhou com ele teve a coragem de falar para ele o que falei, sabe, sobre essas brincadeiras, sobre ficar dando presente. As meninas simplesmente saíam. ”
“Ainda bem que eu tenho uma péssima memória para apagar muita coisa do que aconteceu, mas acho que ficou mesmo, ele nunca chegou a passar a mão em mim ou dar em cima de mim descaradamente. Mas eu realmente não consigo dizer nada para ele além de nojo. Toda vez que lembro disso, me dá nojo, porque eu realmente não soube o que fazer e hoje em dia eu também não sei o que eu posso fazer, porque seria uma advogada no começo de carreira contra um advogado com mais de uma vida de carreira, né. ”
Lígia, interpretada por Fernanda Vasconcelos, é uma personagem fiel ao marido e comprometida em cuidar da boa reputação da família é vítima de agressões verbais, psicológicas e físicas, na série. A esposa, que tinha como sonho desde jovem ser uma cantora, é agredida pela primeira vez fisicamente ao chegar em casa e contar ao companheiro que gosta de cantar e pedir sua permissão. Situação de dominação que está presente na atualidade, tendo em vista dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho, em que 29% dos homens no mundo preferem que as mulheres não tenham emprego.
O marido, então, justifica a sua primeira agressão como medo de perdê-la e por ciúmes, fazendo com que Lígia, a vítima, se sinta culpada por desrespeitar a vontade dele. A segunda agressão vem em forma de estupro, quando o homem chega bêbado e a força, fazendo com que a vítima novamente se sinta culpada por serem casados e ela ser obrigada a realizar suas vontades. E a terceira agressão, física e verbal, é quando Lígia desce do palco e ele, imediatamente, vai até o camarim e ameaça expulsá-la de casa, agredindo-a e parando somente com a chegada de uma terceira personagem.
Com isso, após mais um caso de agressão e cheia de hematomas, as amigas da personagem tentam alertar a gravidade da situação, atentando para o fato de que o homem deve ser denunciado. Porém, pelo medo de acontecer algo pior ou de acabar com o casamento, a vítima se cala. Algo ainda comum em 2019. Dados de um levantamento do Datafolha, encomendado pela ONG FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), mostram que no Brasil, 42% das agressões ocorrem em ambiente doméstico e que mais de 50% das mulheres que são violentadas não denunciam o agressor.
Junto com dados trazidos ainda pela FBSP, uma mulher é vítima de estupro a cada 9 minutos; três mulheres são vítimas de feminicídio a cada um dia; uma mulher registra agressão sob a Lei Maria da Penha a cada 2 minutos. Existem também instituições que buscam alertar os sinais de um relacionamento abusivo e como pular fora. Se a pessoa te monitora constantemente, se seu parceiro(a) tenta te diminuir, se a pessoa tenta mudar hábitos que fazem parte de quem você é, se seu parceiro importa apenas consigo mesmo, se não compreende seus sentimentos ou realiza jogos emocionais e se tenta justificar o relacionamento abusivo por outros fins, fique atento. Você pode estar em um relacionamento abusivo.
O feminismo também é de suma importância dentro dessa temática. A pedagoga Aline Almeida (nome fictício) diz que só se deu conta do relacionamento que estava depois de entrar na faculdade e participar desses movimentos, especificamente dentro da Marcha Mundial das Mulheres que discutiu e percebeu que precisava fazer parte da libertação das mulheres. “Eu pensei como é possível eu estar aqui, vendo tantas mulheres fortes, lutadoras, independentes e conscientes, e eu tenho vergonha de dizer que preciso de ajuda", afirma.
A mulher explica como entrou em um relacionamento violento e abusivo e como saiu dele. Ela conheceu o homem com quem se relacionou aos 15 anos, enquanto ele tinha 21 anos. Foi o primeiro relacionamento dela. Ao final dos 15 anos, ela engravidou dele e sua filha nasceu quando ela tinha 16 anos. “No começo, eu já percebia que não era legal. Ele me tratava de uma forma muito controladora, colocava proibições, brigava comigo quando eu não queria fazer alguma coisa para ele. ”
Aline revela que a primeira agressão aconteceu quando ela ainda estava grávida. “Ele me deu um tapa e jogou a comida que eu estava preparando no chão, depois me fez recolher ainda quente e colocar de volta na panela. E assim foi o ciclo de relacionamento abusivo. Ele me agredia, depois pedia desculpas”.
A entrevistada acrescenta ainda que tinha muito medo de sair do relacionamento, não só pela dependência financeira que tinha, mas também por chegar a abortar o seu terceiro filho por pavor da situação. E que na última agressão, quando ele quebrou um cabo de vassoura em seu corpo, ela decidiu procurar a ajuda da família e sair do relacionamento tóxico em que vivia, junto às suas duas filhas, uma vez que as crianças presenciaram e sofriam com a pedagoga.
E hoje, depois de todo sofrimento, dor, transtornos, tentativa de suicídio e receio de entrar em um novo relacionamento, ela diz que não quer que outras mulheres ouçam ainda um "Se ele te agrediu, porque ficou tanto tempo com ele?" "Você não procurou ajuda antes por quê?" “O que você fazia quando ele ficava agressivo?", como ela ouviu quando procurou ajuda. Ela acredita que a justiça está ao lado dessas mulheres. A Revista Época publicou uma matéria que mostra a cultura machista dos brasileiros, intitulada "A culpa é dela. É o que pensam os brasileiros em relação à violência contra a mulher.", divulgando números e entrevistas que comprovam o machismo enraizado na sociedade brasileira.
Adélia, personagem de Pathy Dejesus, é uma das quatro protagonistas do seriado. Mulher, negra, mãe e moradora de uma comunidade no Rio de Janeiro, ela trabalha desde pequena como empregada doméstica para sustentar a filha e a casa onde moram com a irmã de Adélia. A personagem ainda vive um romance com Capitão, músico e negro, interpretado por Ícaro Silva.
Em determinado momento da série, Malu, papel de Maria Casadevall, conhece Adélia. As duas viram amigas e abrem uma sociedade. Naquele contexto, no entanto, as questões da Adélia eram específicas e diferentes das questões das outras três protagonistas. Além de mulher, mãe, pobre e solteira, ela é negra. Ao passo em que Malu, Lígia e Thereza lutam por independência financeira e de seus maridos, reivindicam o direito de trabalhar e de fazer o que gostam, Adélia é independente e trabalha desde nova, ao mesmo tempo em que não conta com muitas possibilidades de escolhas, observadas nas outras mulheres.
Essas questões particulares sobre a condição da mulher negra não eram discutidas pelos movimentos feministas do início dos anos 1960. A luta das mulheres brancas da época, tão importante para o lugar de onde as mulheres de hoje falam na sociedade, não considerou o contexto de anos de escravização, machismo, patriarcado, classismo e racismo que sempre envolveram a mulher negra.
O cenário racista daquele período não se distancia da conjuntura atual. Segundo o Atlas da Violência de 2017, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Os negros possuem 23,5% de chances maiores de serem assassinados do que brasileiros de outras raças, de acordo com o Atlas. No ano de 2015, pesquisas divulgadas também pelo Atlas da Violência mostraram que, de 2003 a 2013, o número de feminicídios aumentou entre as mulheres negras, em comparação às mulheres brancas. O número de mulheres negras assassinadas cresceu 45%, ao passo em que o de brancas diminuiu 10%.
As estatísticas também mostram que as mulheres negras são mais vitimadas pela violência doméstica, correspondendo a 58,68% dos casos em 2015, segundo o Ligue 180. Elas também são mais atingidas pela violência obstétrica (65,4%) e pela mortalidade materna (53,6%), de acordo com o Ministério da Saúde e a Fiocruz. Entre as 22 milhões de brasileiras que sofreram assédio em 2017, 40,5% são pretas, de acordo com pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Datafolha, em 2018.
Esses dados e pesquisas recentes comprovam que o racismo é enraizado na sociedade brasileira e atinge principalmente as mulheres negras. Nesse sentido, o feminismo negro surge para dar conta das questões particulares da mulher negra, se colocando nas cenas de lutas e movimentos feministas. Dandara Tonantzin, 25, formada em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia, mestranda na Universidade Federal de Minas Gerais, feminista e mulher negra explica que o feminismo nasceu da necessidade de autonomia e emancipação das mulheres.
Porém, na denominada Primeira Onda do feminismo, as lutas tinham como protagonistas mulheres brancas, burguesas e escolarizadas. Assim, as primeiras ondas do movimento universalizam e colocam todas as características do ser mulher em uma mesma caixinha que não é capaz de suportar todas essas multiplicidades, já que enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto, as mulheres negras lutavam pelo direito à educação, visto que analfabetos não podiam votar, elucida Dandara Tonantzin.
“Então, ao perceber que o feminismo por si só não daria conta de dizer sobre as nossas vidas, as mulheres negras se organizam para disputar também os rumos do feminismo. E essa construção é denominada de feminismo negro, feminismo interseccional”, explica. A pedagoga diz que não existe uma hierarquização de opressões e que não é como se a mulher negra sofresse mais que a mulher não negra. “É que o machismo aliado ao racismo é como uma faca que é amolada duas vezes. Ela corta ainda mais, com mais profundidade”.
Dandara Tonantzin descreve o racismo como estrutural e como responsável por determinar relações de poder, de lugares e não lugares na sociedade. E por estar presente na estrutura, o racismo torna-se difícil de se combater, já que, para ela, ele está além de um comportamento individual que uma pessoa tem com a outra. “. É importante ter lutas coletivas, que consigam dar conta da complexidade do que é o racismo e como ele se estrutura. Por isso, o feminismo negro é tão urgente e necessário. Organizar estratégias para a emancipação das mulheres negras é importantíssimo”.
Coisa Mais Linda traz a discussão sobre feminismo e feminismo negro, retrata atitudes racistas recorrentes no dia-a-dia e na sociedade que Adélia tem com Malu. Mas falha em alguns pontos. Para Dandara Tonantzin, a série segue o estereótipo de hipersexualização da mulher negra quando representa as relações de Adélia com seu ex patrão. “É toda aquela fetichização da empregada mulata, que está ali quente e disponível para o sexo”, afirma.
Além disso, a personagem negra é sempre a que serve, a responsável pela limpeza, mesmo fazendo parte de uma sociedade comercial, em tese, igualitária entre ela e Malu. Dandara ainda comenta sobre os personagens negros e a associação de suas imagens à servidão. “Os negros estão tocando samba, os brancos cantando. Nós não temos pessoas negras sentadas, consumindo bebida e música no estabelecimento”, acrescenta.
As produções audiovisuais, no entanto, não se mostram capazes de retratar o racismo da vida real com precisão e verdade. Até porque a maioria delas são dirigidas e encenadas por personagens brancos. De acordo com a pesquisa “A Cara do Cinema Nacional”, desenvolvida pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, de 2002 a 2014, não foi registrada nenhuma mulher negra na direção de filmes, enquanto os homens eram 2%. Jhyenne Gomes, 24, graduanda no último ano do curso de Jornalismo na Universidade Federal de Uberlândia, é uma personagem negra da vida real.
Ela conta que sua vida não é definida pelo racismo, mas que casos sempre a permearam. Jhyenne explica que é filha de pais negros e que tem uma irmã branca. A sociedade a lê enquanto negra e a irmã, enquanto branca. Desde criança, comparações eram feitas entre as duas. Ela lembra que pessoas diziam para a mãe que levasse a irmã para fazer testes para comerciais porque ela era muito bonita, enquanto ela era tida como moleca e não feminina o suficiente por não gostar de vestidos, florzinhas e a cor rosa.
“Então desde pequena eu era a moleca e a principal questão que incomodava as pessoas era meu cabelo. ” Jhyenne relata que, se estivesse com o cabelo solto, as pessoas pediam para que ela o penteasse porque não estava baixo ou liso o suficiente. Com 10 anos, ela mantinha o cabelo em um rabo de cavalo em trança. Aos 12 anos, pediu aos pais para que alisasse os fios. “Alisei o cabelo dos 12 aos 19 anos. Era um processo muito doloroso, porque você passa um produto químico no seu cabelo, que fede, que arde, que quebra o seu cabelo. E o seu cabelo nunca é liso o suficiente”, conta.
Outro caso de racismo vivido por ela é o estereótipo da negra raivosa, encarado pela estudante como uma questão social enraizada. “Se eu falo mais assertivamente, se eu me posiciono, se eu não abro mão da minha posição, então eu sou vista como a raivosa, a encrenqueira, a de cara fechada para todo mundo e que quer brigar com todo mundo. ” Para ela, esse foi um papel que as pessoas escolheram e que atribuem às mulheres negras que não aceitam ser submissas ou ficar caladas.
Jhyenne - Foto: arquivo pessoal
Para Jhyenne, o caso mais emblemático encarado por ela é a tentativa por parte de pessoas brancas de amenizar o racismo afirmando que ela não é tão negra ou que é morena. “Essas mesmas pessoas brancas que falam ‘ah você nem é tão negra’, elas sempre souberam que eu era negra. O branco sempre sabe. Eles sempre sabem enquadrar a gente. Saber enquadrar mas tentar amenizar é uma questão de dominação racial e social”.
Jhyenne compartilha a mesma opinião que o rapper Djonga. Para ambos, as pessoas escondiam melhor o racismo delas. No contexto político atual, elas se sentem mais à vontade em se assumirem racistas. Para ela, é importante lembrar que o racismo é uma questão estrutural e que, no Brasil, ainda existe o mito da democracia racial que considera que no país não existem preconceitos.
É importante, para a estudante que cita Angela Davis, “insterseccionalizar as opressões”. Ela ainda enxerga dentro do feminismo um elitismo e a falta desse recorte, fazendo uma crítica aos movimentos feministas que utilizam palavras difíceis ou em língua inglesa e não conseguem atingir mulheres periféricas ou sem acesso à educação. “E o que eu tenho visto é que esses recortes são abordados pelo feminismo negro, pelo feminismo interseccional. E eu acho que é esse feminismo negro que carrega nas costas a luta e a opressão de ser uma mulher negra na sociedade, de tentar explicar para as pessoas como a mulher negra é a base da pirâmide de opressões no Brasil”.
Sobre a série, Jhyenne não terminou os episódios porque questões sobre as mulheres negras não são bem abordadas e recortadas nesse e em outros tipos de produções audiovisuais. “São novelas, filmes e séries que colocam as mulheres negras em um patamar de empregadas, de mulheres sexualizadas, e não contribuem para uma discussão de como é feita a representação das mulheres negras e das pessoas pretas nessas séries”.
Na vida real, os movimentos feministas e suas diversas vertentes vêm tentando, ao longo da história, conquistar lugares e direitos para as mulheres na sociedade. Se três mulheres escrevem hoje sobre feminismo, é porque feministas lutaram para isso. E como pondera Jhyenne, falamos por aqueles e aquelas que virão depois de nós, assim como as feministas lutaram pelos seus direitos, mas principalmente por aqueles que iriam vir.
Séries feministas para você adicionar à sua lista
The HandMaid’s Tale
Jessica Jones
One day at time
Cara gente branca
The Crown
Chewing Gum
Insecure
Orange is The New Black

CAPÍTULO 2
Assédio no trabalho

CAPÍTULO 3
Relacionamento abusivo e violência

CAPÍTULO 4
Feminismo negro e racismo
.png)

ADICIONAR COMENTÁRIO